segunda-feira, janeiro 26, 2009

Sentidos em Bicas


Demorou, mas fiquei fã do Orkut. É quase um milagre encontrar pessoas que não vemos há tanto tempo. Fui pesquisar por Bicas, é claro, e achei montes e montes de comunidades, umas sérias, algumas nem por isso e outras assim, assim...
Como já há muito tempo não dou o "ar da minha graça" por aqui, resolvi tirar o pó de mais algumas memórias em Bicas. Não me levem a mal aqueles que acham que Bicas não presta, como li em algumas comunidades jovens do Orkut, mas nos anos dourados, ou prateados, sei lá, a minha percepção era outra.
Apesar dos tempos difíceis parece que a vida era um bocadinho mais cor-de-rosa, sem a globalização e a consciência de todas as guerras que graçam por este mundo afora. Não via os males políticos mas o “bem viver”. Penso que, talvez por isso, os meus sentidos não esqueceram.
Ainda era um bocadito como aquela música do Ataulfo Alves, "eu igual a toda meninada, quanta travessura eu fazia... eu era feliz e não sabia". Os garotos ainda jogavam bolinha de gude nas calçadas, os circos ainda acampavam no Bairro Santana, a Júlia ainda cantava na Igreja. Eu era pequena mas ainda me lembro da Júlia cantando durante a Missa. Aliás a minha memória musical passa também pelas aulas de piano e flauta da D. Sofia e da sua mãe, acho que era a D. Mafalda a cantar Carlos Gomes e claro, o "Seu" Vicente Rossi. Aliás, falar de música em Bicas sem falar do Seu Vicente Rossi devia ser considerado quase um "pecado", já que ele marcou várias gerações. Era um verdadeiro apaixonado pela música e conseguia que muitos apreciassem a sua paixão. Até hoje e graças ao Seu Vicente Rossi, conheço alguma da clássica música brasileira que poucos conhecem.
Um pouco mais tarde, entrando na adolescência, os sons eram outros. Apesar dos Genesis, Elis, Pink Floyd e Chico, não me esqueço do Carlos da Casson. Não das notas de falecimento, prrrrá tum
tchiiii, mas dos bailaricos e serestas onde eu dançava a não mais poder, da panela velha é que faz
comida boa e claro do pinga ni mim. E ainda na parte dos sons, apesar de haver umas cervejas à mistura, como não me lembrar das deliciosas cantorias nas Exposições, na barraca do Edir e no Chora Morena?
Mas as minhas lembranças também ouvem o bem-te-vi anunciando a chuva, o sabiá cantando, o meu melro anunciando a chegada de mais um dia, a buzina do leiteiro, a sirene da Leopoldina e o apito da Maria Fumaça.
Mas havia muito mais. Os cheiros, por exemplo. Como é que poderia me esquecer dos cheiros? No verão quando o dia terminava, um perfume a "Dama da Noite" invadia o Bairro Santana. Quando chovia, a terra molhada exalava um odor tão caracteristico e agradável que raramente senti em outra parte desse mundão que tenho visitado.
Mas já que entrei na onda dos sentidos, já falei da audição, do olfacto. Vamos ao sabor. Por que não lembrar-me dos aniversários e os docinhos da Tia Nirlene, a goiabada da Tia Maria José ou as balas de côco da Geralda doceira? Ou das "caçarolas" da Padaria do Chiquim? Café com pão fresquinho, quentinho, com manteiga Girafa. E comer jabuticaba no pé? Ou das coxinhas de galinha e o sorvete de ameixa do Pedro Machado? Nossa, claro, o Grapette. Tá bem, não era feito em Bicas, mas o sabor do Grapette faz também parte da minha memória gustativa.
Agora, a visão: Não sei como está actualmente mas o "mar de morro" era o que eu via quando abria a janela pela manhã. Adorava os arredores de Bicas, o Jardim e a Igreja, a gruta, a beleza dos fins de tarde e o colorido das roseiras em flor.
Falta o tacto? Ok, esse é um dos mais importantes, o carinho, o toque, a emoção de "pegar na mão" das primeiras paqueras, e claro, a lembrança dos abraços dos parentes queridos. Esses são cada vez mais raros.
E à medida que o tempo ia passando, e que eu ia perdendo gradualmente a inocência de criança, que mudavam os meus sonhos e desejos e que a adolescência se impunha, tudo parecia sempre muito natural. Os dias eram longos, havia tempo para conversar em família, visitar amigos e colegas, passear pela cidade, à toa, sem ter que ir a lugar algum, apenas andar pela cidade, à pé ou de bicicleta, ou mesmo sentar à frente da casa, sem ver nada em particular, mas apreendendo cada detalhe da rua, da escola, das pessoas, enfim, de Bicas.
Hoje os sentidos continuam activos, claro, uns menos que outros, mas como costumo dizer, é do caruncho. Mesmo assim, muitas vezes, uma brisa traz um cheirinho qualquer que me lembra Bicas ou mesmo uma frase ou história, contada aqui em terras lusas, faz-me lembrar e dizer muito rápido: em Bicas também era assim...
Lúcia